

Por Anabela Mota Ribeiro l Fotografia de Pedro Ferreira
A palavra é uma arma e a intervenção a sua divisa.
A antropóloga Ana Lopes escreveu Trabalhadores do Sexo, Uni-vos. Um mundo do qual muito se diz, mas do qual muito pouco se sabe.
O livro Trabalhadores do Sexo, Uni-vos abre com uma citação de Marx: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneira diferente; a questão, porém, é transformá-lo.” A antropóloga Ana Lopes cita o filósofo no seu livro e apresenta o activismo e a participação cívica como essenciais à sua vida.
É uma “menina de boas famílias” que trabalhou na indústria do sexo durante quatro anos (como operadora de linhas eróticas, modelo e dançarina de striptease). Simultaneamente, desenvolveu a sua tese de doutoramento na Universidade de East London sobre os direitos e a organização laboral nesta indústria. É uma tese polémica, condensada num livro recentemente editado em Portugal pela Dom Quixote.
Ana Lopes tem 27 anos e regressou agora a Portugal, onde trabalha na criação de uma nova associação: “Tem como objectivo fomentar e desenvolver a sustentabilidade daquilo a que chamamos a sociedade civil. Para que os cidadãos possam cada vez mais influenciar o local onde vivem, a sociedade onde vivem, o mundo onde vivem.”
“Se pensa que vai aqui encontrar descrições picantes do mundo do sexo e da prostituição está enganado”, escreve na contracapa do seu livro. Mais do que o resumo da sua tese de doutoramento, pode ser lido como um manifesto político?
Pode. Escolhi fazer um doutoramento muito político. Comecei por querer fazer uma investigação ortodoxa da indústria do sexo. Achei que era um tema fascinante, do qual se fala muito, mas do qual se sabe muito pouco.
Empenhada
Dedicada à sua causa, Ana Lopes afirma: “Quero fazer deste mundo um mundo melhor e mais justo.”
Há em relação ao grupo um sentimento de pertença – é one of them. Se não tivesse pertencido à indústria do sexo, teria esta visão que lhe permitiu fazer uma tese de doutoramento tão original?
Penso que não. Não sentiria autoridade para falar destas coisas da forma como falo, teria sempre de dizer “acho que”, “penso que”. Como já fiz parte e sou uma activista internacional, sinto-me à vontade para falar em “nós”.
Quando nos referimos à indústria do sexo, temos quase sempre uma atitude moralista...
Não sou diferente das outras pessoas. Até há alguns anos, nunca tinha pensado nestas questões. Descartar-me desses resquícios foi à força de passar muito tempo com trabalhadores do sexo, de me aperceber que são trabalhadores como quaisquer outros, que não há nada de transcendente nesta coisa de vender serviços e fantasias sexuais.
Disse “vender serviços sexuais” e não “vender o corpo”.
É das tais coisas que nos habituamos a ouvir e que não questionamos. Não é o corpo que se vende, vende-se um serviço, que é feito com o corpo, se for – pode ser um serviço de voz, como é feito nos telefones. A maioria das pessoas com quem convivi não sente esse problema da venda de um serviço que é feito com o corpo. Se tivesse ido à Conferência Europeia de Profissionais do Sexo , tinha estado com um grupo de 200 pessoas de quase todos os países europeus que têm essa postura: “Eu não sou uma aberração.”
Este livro, além de subversivo, é interpelador. Uma ideia-base é a de que os trabalhadores do sexo não querem ser salvos, querem é ter direitos iguais aos dos outros trabalhadores.
As pessoas que estão em condições aberrantes não querem ser salvas da prostituição, querem ser salvas de todo o tipo de abusos: das teias de máfias criminosas, de relações violentas, de um problema de toxicodependência. Existe um mundo de problemas associados à indústria do sexo: são esses que devem ser resolvidos. O facto de trabalharem na indústria do sexo não é o problema em si. É uma mínima parte da indústria do sexo que está em condições de semi-escravatura.
A ideia corrente é a contrária: que aqueles que podem escolher são uma parte irrisória.
Conheci pessoas que trabalham nesta indústria que têm cursos universitários, mestrados, que já tiveram outro tipo de carreiras e optaram pela indústria do sexo. Também não acho que isso seja a maioria. A grande maioria podemos compará-los àqueles que fazem trabalho não-qualificado.
Aos que trabalham numa fábrica?
Ou qualquer coisa. É evidente que não é trabalho ideal, mas é uma das poucas escolhas possíveis. Depois, há uma minoria que é realmente forçada. A pobreza não pode explicar a indústria do sexo, há muitas pessoas muito pobres que não vendem sexo. Os números sobre tráfico, normalmente, vêm de amostras muito pequenas e tendem a confundir a prostituição de rua com indústria do sexo.
“Existe um mundo de problemas associados à indústria do sexo: são
esses que devem ser resolvidos.”
A definição mais genérica, que consta do livro, abre para filmes, linhas telefónicas, fotografias e até publicidade.
Isso é a indústria do sexo. A prostituição de rua é uma pequena parte se compararmos com a prostituição que se faz em locais escondidos. Mas, por ser visível, é aquela que leva as pessoas ao pânico, porque são todas traficadas e emigrantes!
Pensa-se que esta é uma realidade sobretudo feminina. É assim?
Não temos bem a consciência de como o número de homens e transgéneros na indústria do sexo é significativo... São quase metade.
Porque é que a mulher tem sempre a aura de pecadora ou de perseguida e indefesa?
A indústria do sexo era maioritariamente feminina e importava castigar a sexualidade feminina. Para o homem era natural ter desejos sexuais, vários parceiros. Muitos dos que dizem que a prostituição não devia existir, não percebem o potencial de trabalhar nesta indústria.
O que é que quer dizer?
É quase revolucionário para a mulher passar por cima dessa opressão moral, assumir que tem muitos parceiros sexuais e que leva dinheiro por isso. É mesmo empurrar as barreiras dos papéis do género, porque não é isso que a mulher deve fazer: deve ser monogâmica e ter muito controlada a sua sexualidade. Até aos anos 60, às conquistas do movimento feminista, as profissionais do sexo tinham mais direitos do que qualquer outra mulher, tinham acesso a uma educação sexual que outras não tinham.
Essas mulheres eram olhadas como “coitadas”, coisa que hoje, muitas vezes, ainda acontece?
Havia uma diferença entre as mulheres respeitáveis e as pessoas que trabalhavam na indústria do sexo. As mulheres dos descaminhos não eram só aquelas que vendiam serviços sexuais, o leque era mais abrangente.
Porque é que decidiu dedicar a sua vida a esta causa?
Sinto a necessidade de tentar estabelecer os direitos daqueles que não os têm, que estão oprimidos, marginalizados. Dediquei-me de corpo e alma a este movimento durante os últimos seis anos.
Porquê?
Fui para Inglaterra com 20 anos trabalhar com um antropólogo, Chris Knight, que tem uma teoria sobre a origem da cultura controversa: faz uma ligação entre o sexo e a economia, onde nos tornámos humanos modernos. Por outro lado, [pesou] o facto de ter começado a trabalhar nas linhas eróticas.
Em que circunstâncias começou a trabalhar nas linhas?
Vi o anúncio numa revista e achei que podia ser fascinante. Quis saber como é que funciona, ir para além daquilo que vem nas reportagens.
Trata-se de conhecer o humano nas suas múltiplas dimensões.
Para um antropólogo é isso que se faz todos os dias, a toda a hora.
Como é que criou o International Union of Sex Workers – iniciativa que integrou no seu doutoramento?
Estava a trabalhar nas linhas eróticas quando defini a linha do meu doutoramento. Nas entrevistas-piloto que realizei tive a sensação que as pessoas me estavam a dizer que faltava uma coisa. Não era mais um estudo, era uma associação na qual pudessem reivindicar os seus direitos. Perguntei-lhes se queriam mesmo formar essa plataforma. A resposta foi positiva.
A leitura que na sua família e socialmente fazem de si é marcada pelas suas posições nesta matéria?
O meu trabalho é político. Tenho argumentos muito bons, acho que foi por isso que tudo isto funcionou, que consegui a filiação no sindicato geral [inglês], que consegui o apoio do movimento laboral de Inglaterra. Não houve ninguém que deixasse de me falar ou de ser meu amigo.
Porque é que decidiu contar que tinha trabalhado na indústria do sexo?
Tenho muitos amigos e amigas na indústria do sexo que optam por não dizer às famílias aquilo que fazem. Eu optei por ser sempre aberta. Nunca estive numa posição de pedir desculpa.