segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A Lei nº 9.099/95 e a vulnerabilização dos crimes de violência contra as mulheres

A capacidade da resistência feminista se caracterizou pelas críticas formuladas ao uso opressivo da Lei nº 9.099/95 às mulheres. Por sua vez, as DEAMs, na falta de uma jurisprudência específica para o combate da violência, passaram a servir-se dessa Lei como referência jurídica para tratar dos delitos de violência de gênero, sobretudo das lesões corporais e dos crimes de ameaça.
Se por um lado, é inegável que nas sociedades ocidentais contemporâneas os conflitos interpessoais tomaram tal magnitude nas sociabilidades da vida privada cotidiana que uma espécie de contrato social desigual e hierárquico dissimula as relações conjugais que conflitam com os ideais de igualdade universal de direitos entre homens e mulheres, por outro, esse contrato está presente nas sociabilidades e nas relações institucionais (Suárez, 2002) e também conseguiu se fazer presente no espírito da Lei nº 9.099/95, conforme revela uma pesquisa sobre a violência contra a mulher realizada pelo Data Senado, em 2006/2007:
Perguntados sobre o que acham que ocorre quando a mulher faz a denúncia: 33% dos entrevistados afirmaram que "quando o marido fica sabendo, ele reage e ela apanha mais"; 27% responderam que não acontece nada com o agressor; 21% crêem que o agressor vai preso; enquanto 12% supõem que o agressor recebe uma multa ou é obrigado a doar uma cesta básica.13
Criada a Lei para "resolver" os minúsculos delitos da vida ordinária, a expectativa de celeridade e de ruptura com a impunidade - centrada na busca pela "conciliação" entre as partes e visando mais eficácia processual -, acabou transformada em celeiro para a "resolução" dos crimes de violência praticados contra a mulher. Assim a partir de 1995, os crimes comuns de violência denunciados nas DEAMs, tais como as lesões corporais e ameaças, passaram a ser tratados no âmbito da Lei nº 9.099/95, operada pelos Juizados Especiais Civis e Criminais (JECRIMs), destinados a julgar delitos considerados de menor potencial ofensivo. Ou seja, aqueles crimes de pena máxima não superior a dois anos. Não se trata de discutir aqui os efeitos dessa lei e as mudanças na política criminal repressiva brasileira, mas de enfatizar suas implicações no tratamento da violência contra as mulheres.
Campos (2001) e Barsted (2006) evidenciam os principais pontos polêmicos da Lei nº 9.099/95 que geraram insatisfações e resistência por parte do movimento feminista: a) os delitos de violência contra a mulher perderam o caráter de crimes de ação pública - qualquer pessoa podia denunciar - e foram transformados em crimes de ação pública condicionados à representação da vítima, o que significa que a ação penal só tem início a partir de denúncia expressada pela vítima de processar criminalmente o acusado; b) restrição na atuação da DEAM que, pela Lei nº 9.099/95, tem função mais centrada no registro do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO); c) a nova lei suprimiu a realização do inquérito policial, esvaziando, em parte, a competência investigativa das DEAMs; d) estabeleceu penalidades pecuniárias e trabalho alternativo, ambos bastante desacreditados como elementos punitivos em nossa sociedade; e) estabeleceu mecanismos quase "compulsórios" de conciliação entre as partes caracterizando a "imposição" de um "fim" ao conflito.
Se, por um lado, a Lei nº 9.099/95 trouxe novas competências aos espaços de atuação jurídica dos JECRIMs, criados a partir de uma tríade articulada: celeridade dos procedimentos, intencionalidade relativa de promover a conciliação e atribuição de penas alternativa e/ou pecuniárias, por outro, a conseqüência imediata foi que, dos casos em que os JECRIMs passaram a atuar, cerca de 70% eram relativos à violência contra a mulher e, destes, mais de 50% das denúncias acabavam efetivando-se em "acordo de conciliação", assinado pelas partes. Portanto,
[...] levando-se em consideração a natureza da violência doméstica e a relação de poder presente nesses crimes, a Lei nº 9.099/95, ao incluir as ameaças e as agressões físicas no rol dos crimes de menor potencial ofensivo, acabou por estimular a desistência das mulheres, através das audiências de conciliação, de processar seus maridos ou companheiros agressores. Com isso reforçou, também, a cultura da impunidade que leva os homens a agredirem as mulheres. (Barsted, 2006, p. 78).
A Lei nº 9.099/95 ao tratar a violência contra a mulher na ordem semântica de menor potencial ofensivo, não ofereceu as soluções que as vítimas necessitavam, uma vez que a centralidade desta lei dirigia-se ao agressor-réu. As vítimas mulheres eram praticamente silenciadas mediante a pergunta: "a senhora quer continuar a discutir o assunto?" (Campos, 2001). Essa pergunta, profundamente inibidora e indutora de resposta, propiciava que, na continuidade da audiência, fosse apresentado o termo do acordo conciliatório para ser assinado, e, logo após, o casal regressava para casa, já reconciliado. Escondia-se por trás dessa conciliação, sem dúvida, a garantia da manutenção dos laços familiares, e, com isso, sucumbia a causa do conflito. Na realidade, acabava sendo destinada ao lócus familiar a responsabilidade de produzir a reconciliação do conflito entre as partes.
Além do efeito descriminalizante da Lei, uma das suas consequências perversas era o fato de, em muitas situações, a própria mulher, vítima da agressão, ter de trabalhar para pagar a cesta básica, uma vez que o marido, em muitos casos, encontrava-se desempregado quando retornava do ato conciliatório.
Assim, a partir de 2002, um consórcio14 composto por entidades públicas, ONGs, representantes do movimento feminista e grupos organizados interessados na questão uniu-se a uma parte da bancada feminina no Congresso e teve início o processo de elaboração de uma nova proposta de lei que, calcada na Convenção de Belém do Pará, enfrentasse a violência doméstica contra as mulheres de forma mais eficaz.
Em abril de 2004, o Executivo instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial para "... elaborar proposta de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica contra a mulher", sendo relatora do Projeto de Lei a então deputada Jandira Feghali. Depois de mais de um ano de diálogo e discussão com vários grupos feministas, entidades políticas e assessoras da Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM/PR), e contando com a assessoria de advogados sensíveis à questão, chegou-se ao texto definitivo da nova lei de combate à violência contra a mulher.
Vale destacar o depoimento do promotor Lessa Bastos (2007, p. 3) a propósito da Lei nº 9.099/95 e da chegada da lei Maria da Penha:
A Lei nº 11.340/06 pegou a comunidade jurídica de surpresa e, como tudo o que é novo, tem despertado bastante discussão, principalmente pelo afastamento dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais Criminais nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (...) tendo em vista que o modelo dos Juizados Especiais Criminais, não tanto por suas regras, mas principalmente por sua operacionalização, se mostrou ineficiente e inadequado para o enfrentamento de um problema que, lamentavelmente, ocorre diuturnamente...