
Three decades of the feminist resistance against sexism and violence towards women: 1976 to 2006
Lourdes Bandeira
Professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher (Nepem/UnB)
RESUMO
Análise das principais ações e estratégias de resistência desencadeadas pelo movimento feminista que, nos últimos trinta anos, no Brasil, buscou erradicar a diversas formas de violência existentes contra a mulher. Discute-se por um lado, a violência como estratégia de controle sobre o corpo feminino e, por outro, a ineficácia da Lei nº 9.099/95. Com a implementação da Lei Maria da Penha, uma importante conquista legislativa e jurídica no combate à violência contra a mulher, evidenciam-se mudanças nas estratégias socioculturais e nos recursos jurídicos utilizados no País; entretanto, expressões de violência institucional continuam presentes na cultura e nas práticas jurídicas. Tais expressões são parte de uma lógica moral masculina que ainda modela os procedimentos dominantes e que se faz presente nas instituições e entre os agentes públicos, assim como nos espaços privados e na família. Enfim, no conjunto da sociedade brasileira.
Palavras-chave: resistência feminista, violência, gênero, cultura jurídica, sexismo, Lei Maria da Penha.
ABSTRACT
This paper analyzes the main actions and resistance strategies unchained by the Brazilian feminist movement that, in the last thirty years, tried to eradicate violence against women. It discusses on one side, the violence as a control strategy on the female body and, on the other, the inefficacy of the Law N. 9,099/95. With the implementation of Maria da Penha's Law, an important legislative and juridical conquest in the struggle against violence towards women, changes are evidenced in the sociocultural strategies and in the juridical resources used in the country; however, expressions of institutional violence are still present in the culture and in the juridical practices. Such expressions are part of a male moral logic that still models the dominant procedures and that are present in the institutions and among public agents, as well as in the private sphere and in the family, in other words, in all Brazilian society.
Keywords: feminist resistance, violence, gender, juridical culture, sexism, Maria da Penha's Law.
Estou feliz
Hoje meu amor veio me visitar,
Me trouxe flores para me alegrar,
E com lágrimas pede para voltar.
Hoje o perfume eu não sinto mais
Meu amor já não me bate mais,
Infelizmente eu descanso em paz...
Refrão da música Rosas.
Conjunto: Atitude Feminina - Brasília-DF
Introdução
No Brasil, a resistência feminista contra a violência sofrida pelas mulheres acarretou mudanças históricas nos processos legislativos, institucionais e jurídicos. Essas mudanças foram iniciadas no período da ditadura militar, na década de 1970, quando, no cenário das demandas pela anistia política de centenas de homens e mulheres, vítimas da violência militar, segmentos do movimento feminista brasileiro se empenharam em denunciar a violência cometida contra as mulheres no próprio lar. Este processo de resistência se fortaleceu com várias estratégias de luta, dentre elas, a nominação da expressão "violência contra a mulher", seguida pela demanda por políticas públicas a fim de coibi-la.
A primeira resposta do Estado brasileiro às demandas foi efetivada com a criação da Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher (DEAM) em 1985, em São Paulo, cujos impactos repercutiram, positivamente, nos segmentos menos privilegiados da sociedade.
Seguiu-se, nos anos 1990, a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (JECRIMs), regidos pela Lei nº 9.099/95. Embora estes tivessem como principal característica tratar dos delitos gerais considerados de "menor potencial ofensivo", estimulando mecanismos de conciliação entre as partes envolvidas, foram "apropriados" pela evidência empírica da habitualidade das denúncias de violência contra as mulheres registradas nas DEAMs. As denúncias passaram a ser tratadas no âmbito dessa lei, ocasionando muitos equívocos, desde o desconhecimento de que a violência contra a mulher é estruturante das relações hierarquizadas entre os sexos, até decisões inadequadas, que, muitas vezes, acabaram por justificar uma violência social e jurídica (Campos, 2008). Isso ocasionou uma forte resistência por parte da militância feminista quanto à aplicação da Lei nº 9.099/95.
A partir de 2000, a intensificação da luta pela democratização dos direitos humanos e pela cidadania impulsionou a criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, que se efetivou em 2003, e esteve presente na elaboração da nova legislação destinada a erradicar a violência contra as mulheres, fenômeno que ainda hoje se expressa em dados alarmantes.
A densa mobilização nacional das mulheres conseguiu também pressionar o Estado brasileiro, levando-o a aprovar, em 2006, a Lei nº 11.340, cunhada como Lei Maria da Penha. Essa Lei representa uma ruptura com o escopo restritivo do conteúdo das denúncias acolhidas nas DEAMs, condicionadas na ordem da violência doméstica, sem, no entanto, compreender a dinâmica e complexidade dos conflitos interpessoais que caracterizavam o cotidiano das mulheres (Suárez et al., 2002).
Foi na Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, que o Tribunal de Crimes contra as Mulheres expôs a necessidade de se inserir o direito à vida sem violência como indissociável da luta pelos Direitos Humanos no mundo, antecedendo a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada pela ONU também em 1993. Esses eventos tiveram importância fundamental para a elaboração da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, conhecida como Convenção de Belém do Pará, que definiu a violência contra a mulher como: "... qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado".
Por sua vez, a Convenção Interamericana, ratificada pelo Brasil em 1994, se constituiu no marco que teve papel fundamental para pressionar o Estado a lograr mudanças legislativas, demandando políticas públicas de prevenção e atenção às mulheres vítimas (cf. Herman, Barsted, 1999, 2006).1
A Lei Maria da Penha foi inspirada na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará), que ampliou a extensão dos repertórios conceituais relativos às múltiplas práticas da violência contra a mulher.
Assim, os momentos de resistência feminista instaurados no Brasil, oriundos do movimento social, inicialmente demandaram ações do Estado tanto pela via institucional-legislativa quanto pela via jurídica, os quais são analisados a seguir.
O objetivo deste texto é evidenciar os processos ocorridos nas três décadas de resistência das mulheres, dos quais algumas conquistas se efetivaram, seja pela persistente organização das mulheres nos movimentos sociais, seja pela atuação por meio das vias legislativas, jurídicas e institucionais. A maioria dos exemplos mencionados aqui foi retirada da mídia nacional impressa. Essa opção metodológica justifica-se porque as discursividades midiáticas, no geral, correspondem aos valores e às representações sociais presentes no senso comum, majoritariamente, em cada sociedade em relação aos homens e às mulheres, que acabam por incidir também nas atuações e práticas profissionais dos/as agentes públicos/as.
Cabe lembrar que as distintas expressões usadas no texto - violência contra a mulher, violência de gênero e violência interpessoal -, embora consideradas categorias com significados conceituais próprios, no geral são utilizadas com sentidos similares. Na análise utilizam-se essas três categorias, uma vez que a violência é dirigida contra a mulher, não simplesmente na condição de ser vítima, mas, sobretudo, por causar uma ruptura com a condição de humanidade da pessoa, atingindo sua integridade plena, causando dor, sofrimento e medo. Ancora-se, necessariamente, na existência de relações de poder assimétricas, de hierarquias, visíveis ou não, pois se trata, concomitantemente, de uma violência derivada de relações sociais de gênero produzidas historicamente, uma vez que a produção da masculinidade obedece a processos diferenciados dos que produzem a feminilidade (Segato, 2003).
Portanto, não se pode desconsiderar que já existe, com anterioridade, na expressão violência contra a mulher, uma ordem simbólica demarcada pela desigualdade que está presente e organiza o cotidiano da vida social, regido por assimetrias existentes entre homens e mulheres. Assim, a dimensão relacional de gênero, independentemente do tipo de vínculo que é mantido entre homens e mulheres, não pode ser dissociada de qualquer manifestação ou expressão de prática de violência, uma vez que potencializa as dessimetrias presentes tanto no contrato conjugal como na vida social em geral. Ou seja, nessa perspectiva, não pode haver dissociação entre as manifestações de violências estruturais e as violências interpessoais.