segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O uso da violência como estratégia normativa do controle viril sobre os corpos femininos

Entende-se aqui a categoria de resistência como compreendendo estratégias e dinâmicas de rejeição e de luta desencadeadas pelas mulheres contra padrões, papéis e normas de comportamentos culturais e sociais desiguais que lhes foram impostos e que hierarquizam os sexos. Assumiram uma resistência que não é feita pela contra-violência, mas pelo desejo de ações de mudanças e por lutas que as reconheçam como sujeitos, "... isto é, alguém dotado de direitos" (Chauí, 1986, p. 136).

 

Em sentido contrário, a performance masculina tem resistido aos processos de mudança, tentando preservar os modelos culturais e cognitivos que lhes garantem o status quo, as assimetrias em relação ao exercício do poder estabelecido no grupo, onde predominam práticas de hierarquia e de mando extensivas aos operadores do direito.

 

Ainda hoje, tanto as ocorrências da violência interpessoal cotidiana, como os assassinatos violentos de mulheres, também denominados de feminicídios2 por algumas autoras, se multiplicam para além do previsível e as características dos números fazem suspeitar que uma variedade de crimes de gênero se esconde por trás de estatísticas homogeneizadoras:

 

Entre 1º de janeiro e dezembro/07, aproximadamente 369 mulheres foram mortas em Pernambuco. De 2002 a 2006, ocorreram 1.512 assassinatos de mulheres. São vítimas principalmente dos maridos, namorados e ex-companheiros. A maioria é pobre, negra e tem entre 15 e 24 anos, mesmo perfil dos homens vítimas de homicídio no Estado. Por sua vez, o relatório da USP/Comissão Teotônio Vilela, com base em dados do Sistema Único de Saúde, mostra que 1.428 mulheres foram mortas no Estado entre 2000 e 2004 (...) o índice é "altíssimo" -, se mantém estável: entre seis a sete mulheres em 100 mil habitantes são assassinadas por ano. A média nacional é de quatro por 100 mil (....), uma combinação de fatores explica a maioria dos homicídios no Estado: a cultura da honra, da masculinidade, aliada à alta disponibilidade de armas de fogo [...] são, em grande medida as causadoras.... (Lacerda, 2007, p. 25).

 

A habitualidade destes crimes remete, dentre as principais causas, aos crimes de poder: a natureza das relações interpessoais entre as partes; a banalização e a incorporação do uso sistemático da violência para a resolução de conflitos cotidianos, as diversas situações de hierarquias que permeiam as relações de afetividade. Conforme atestado pela natureza das relações interpessoais e sociais existentes, testemunhadas nas comunidades masculinas de origem, fragmentos de depoimentos colhidos nas pesquisas etnográficas, ilustram os argumentos usados pelos agressores-assassinos e seus advogados-defensores: "matei por amor, por zelo..."; "matei porque a queria demais..."; "matei para preservá-la da maledicência alheia..."; "matei porque estava fora de mim..."; "fiquei louco de ciúmes, não sabia o que estava fazendo..."; "matei para defender minha honra...". Na sociedade brasileira contemporânea ainda prevalece a equação: presença de relações hierárquicas que se sustentam na negação do outro, associada a relações de "honra e vergonha masculinas", que revelam a assimetria dos pares, herança das sociedades mediterrâneas colonizadoras. Essa equação é impulsionadora de relações interpessoais violentas.

 

Por sua vez, um recorrido pelas notícias presentes na mídia evidencia a força das dessimetrias de poder presentes nos jogos relacionais entre homens e mulheres não apenas simbolizadas, mas como uma ordem que sustenta o controle e a posse sobre o corpo feminino, revelados nas falas dos agressores. Estes exemplos justificam a complexidade das relações presentes nas violências praticadas: "ela queria sair de casa...; "ela era a minha mulher..."; "ela me pertence..."; "ela queria me deixar...", "ela pediu a separação... o divórcio". Complementam esse cenário, os discursos de indignação por parte de homens que formam uma sorte de "irmandade masculina", presentes como "personalidades públicas masculinas e formadores de opinião", os quais repudiam as manifestações públicas levadas a cabo pelos movimentos feministas em favor das vítimas de violência.

 

Com as tais relações dessimétricas de gênero intercruzam-se muitas outras, apresentando maior convergência e visibilidade as socioeconômicas, de raça/etnia, regionais, além de outras, abundantes nos registros policiais e no campo jurídico, uma vez que tais desigualdades não operam apenas na ordem simbólica, mas estruturam os lugares socioinstitucionais de homens e de mulheres em nossa sociedade.

 

Na linha analítica aqui adotada, a categoria "violência contra a mulher" embora revestida de complexidade conceitual, além de ser polissêmica e multicausal, é tomada como um instrumento de controle viril sobre os corpos femininos, que abriga um repertório de práticas diversas em intensidade e extensão. No geral, sob esta designação, são agrupados fenômenos e situações diversas: abusos verbais, físicos e emocionais, agressões e torturas, assédios e abuso sexual, estupro, privação de liberdade, escravidão sexual, incesto, heterossexualidade forçada, possessão forçada dos corpos femininos, maternidade imposta, abortamentos, mutilações físicas, assassinatos, e, enfim, outros crimes passionais e de honra, além de manifestações mais sutis, dissimuladas e envolventes, que sobrevivem por meio de chantagens, emoções e constrangimentos.

 

Do ponto de vista institucional e jurídico, tais situações eram referenciadas sob a denominação de violência contra a mulher, e, portanto, agrupadas em poucos conjuntos classificatórios e modalidades, quando não em um conjunto único, sobretudo quando não havia materialidade explícita da prova (Soihet, 1989). Esse "agrupamento," realizado pela área da segurança pública, ou pelo judiciário, acabou por reproduzir a ausência de legitimidade e de reconhecimento dessas situações, assim como não garantia a aplicação da lei de maneira a desfazer as dessimetrias existentes (Brandão, 2006). A lei Maria da Penha interrompe com esse agrupamento porque opera na ordem simbólica, desestrutura os lugares sociojurídicos do agrupamento classificatório tradicional, e garante a especificidade de cada expressão de violência.

 

Marcadas a ferro é o título do livro de Castillo-Martín e Oliveira (2005) que traz na capa o rosto de uma mulher onde foram gravadas, a ferro quente, as iniciais do nome do seu dono-marido: HB. Aquele rosto ferrado representa milhares de outras que, engessadas em uma relação contratual de casamento, deixam de ser tidas como autônomas cidadãs, perdem ainda a liberdade de escolha e muitas não têm o explícito direito de existir fora de sua pertença contratual, a um dono-marido-patrão-masculino. Do contrário, acabam sendo mortas na guerra conjugal. Alguns exemplos:

 

Em 30 segundos, Alexandre matou a sua companheira, Daniela, com 29 facadas. Deflagrou uma facada por segundo, sendo que a última deixou cravada no peito de Daniela. Motivo confessado: tinha ciúmes e não aceitava o fim do relacionamento. Mais três mulheres foram assassinadas pelas mesmas razões esse [sic] ano [a autora refere-se aos meses de janeiro e fevereiro] no Distrito Federal. (Duarte, 2007, p. 25).

 

A ação durou alguns minutos. Três mulheres sentadas na escada de um prédio em Curitiba, quando uma delas foi atingida por um tiro no rosto. A vítima era comerciária, tinha 23 anos. O autor dos tiros tinha 56 anos e era seu ex-namorado. Declarou-se inconformado com o fim do namoro proposto pela vítima.3 (Mulher..., 2007, p. 5).

 

O crime, que ocorreu na Estância V do Condomínio Mestre d'Armas, em Planaltina (GO), chocou a todos pela brutalidade. A dona-de-casa Deoraci de Souza Oliveira, 28 anos, estava na casa do ex-marido, o também pedreiro Paulo Pereira de Souza, 24, com quem queria reatar o relacionamento. Os dois foram atacados por João Benedito Moreira de Carvalho [26]. Ele estava inconformado com o fim do relacionamento anunciado à tarde, pela namorada. O casal foi morto a facadas, na noite de domingo último. (Duplo..., 2008, p. 31).

 

O rompimento com a relação do casal pela mulher é visto como desobediência ao marido/companheiro e ruptura com a ordem social e com o contrato familiar. Há um "suposto" no horizonte do imaginário masculino de que a mulher que demanda a separação, em uma conjugalidade estável, no limite, troca o papel de esposa-mãe pelo de estar fora da heteronormatividade predominante. Fica cravada a representação social feminina da insubordinação, do revide, da desobediência à ordem familiar masculina hegemônica, e, quando é vista como "desviante" da regra heterossexual, corre o risco de receber uma nominação pejorativa.4

 

Ainda é conduta própria do homem latino, sentir-se possuidor da mulher e com direitos sobre ela. Para alguns, até o direito sobre a vida e morte da mulher.5 Há os que consideram tal comportamento como "natural", uma vez que a socialização viril potencializou as situações de dessimetrias na performance dos gêneros. Nessa direção tem-se observado, nos depoimentos de agressores, que estes decidem, em geral, assassinar a mulher, companheira ou namorada planejando sua ação com antecedência, de modo a pegá-la ou enfrentá-la de surpresa e desprevenida, o que lhes assegura menor risco na execução do intento.6 Paradoxalmente, muitos dos argumentos jurídicos em defesa do agressor recaem, predominantemente, sobre as "razões passionais" e de resguardo à honra masculina para explicar tais homicídios, uma vez que o sistema jurídico não assegura, necessariamente, a efetividade do emprego da lei em toda sua extensão formal e substancial de modo equivalente para homens e para mulheres.

 

Em outras palavras, o sistema jurídico, de modo geral, apresenta dinâmicas e conteúdos sexuados na interpretação e decifração de fatos e situações relativas à violência contra a mulher, reforçando a concepção tradicional de família e, consequentemente, da hegemônica divisão sexual do trabalho, do poder e das categorizações da sexualidade deslocadas do cotidiano para os espaços sociais mais amplos, caracterizados em esferas ou campos. Assim, as mulheres são controladas também socialmente pela sua inserção na cotidianidade da vida, na dedicação à família, à maternidade, aos filhos, nas disputas minúsculas do cotidiano, nos pequenos conflitos, como também nos valores como a fidelidade, honestidade, empatia, subjetividade e cooperação (Devreux, 2005).

 

Observa-se que a maioria da violência viril está relacionada ao fato de as mulheres não responderem plenamente ao padrão ideal de comportamento normativo a elas atribuído nas relações familiares. Essa incompatibilidade está na origem das razões "legítimas" que o marido/companheiro invoca para o uso de um ato corretivo e disciplinador:

 

No Brasil, a força da categoria relacional da "honra" funda a construção simbólica dos gêneros no que tem de mais impensado e naturalizado. A construção dos valores hegemônicos do masculino se faz em torno do desafio da honra, do controle das mulheres e da disputa entre os homens. [...] cabe ao homem tomar conta de sua mulher [...] é dever do homem [leia-se do macho] ficar de olho na sua mulher [leia-se propriedade]. (Machado, 2006, p. 1).

 

As mulheres ainda são vistas pelos homens - e muitas ainda se vêem -, na condição de parte integrante de um cenário dessimétrico e tradicional, com ausência de direitos individuais e subjetivos, restritas e inferiorizadas nos espaços e sistemas legais, assim como nas discursividades sociais. As falas abaixo exemplificam:

 

As pessoas precisam rever muitos valores. Por exemplo, há quem ache [alguns homens] que violência contra as mulheres é legítima em certas situações. Isso precisa ser discutido. Toda violência é, por princípio, ilegítima.7

 

Nas oficinas com os homens, percebemos que a 'identidade masculina' vê a violência como algo quase natural, quase como sinônimo da masculinidade. Homem que é homem manda. O objetivo do nosso trabalho é desnaturalizar essa violência que vai desde obrigar a companheira a servir a comida até ter relações sexuais forçadas.8

 

Uma das razões do aumento da violência deve-se também à socialização violenta vivenciada pela transmissão intergeracional que se ancora na afirmação do ethos viril presente entre os iguais e entre os não iguais masculinos. A competição e a rivalidade estabelecidas entre homens de status similares e de status diferentes enfatizam as sociabilidades competitivas nos relacionamentos violentos entre os homens, geralmente antecedidos por conflitos abrigados no machismo e no sexismo:

 

Pai e filho se aliam contra desafeto. Manoel, 35 anos decidiu acertar as contas com um antigo desafeto na noite de domingo e como parceiro do crime escolheu o filho de 14 anos, ao qual deu um revólver calibre 38. O jovem puxou o gatilho várias vezes, atingindo a cabeça, o braço e a perna da vítima desafeta. Pai e filho compartilharam do ato da vingança.9

 

Como destacam Súarez e Bandeira (1999), são as interações sociais entre pai e filho que, aliados, garantem a manutenção dos espaços de poder, assim como perpetuam o código hegemônico de honra e de vergonha contido no dito popular: "homem que é homem (macho) não leva desaforo para casa". Esse processo é deslocado para as relações entre os gêneros, expressamente manifesto no controle viril, extensivo do cotidiano familiar aos espaços públicos e institucionais.

 

Portanto, concorda-se com Almeida (2007, p. 27), "... ao enfatizar que o conjunto complexo e contraditório destas relações que se potencializam mutuamente, coloca limites e abre possibilidades às práticas sociais dos sujeitos individuais e coletivos. Em outros termos, é no quadro dessas relações sociais e das desigualdades daí derivadas que se processam as práticas e as lutas sociais".