segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A Lei Maria da Penha como estratégia de re-humanização do tratamento jurídico às mulheres

Sociedade e Estado - Three decades of the feminist resistance against sexism and violence towards women: 1976 to 2006

Em vigor desde o dia 22 de setembro de 2006, a Lei nº 11.340/06 foi uma resposta do Congresso Nacional às expectativas da sociedade, com o intuito de reverter o tratamento que era dado às mulheres agredidas. Em 2006, a pesquisa realizada pelo Data Senado revelou que 95% das entrevistadas mulheres desejavam a criação de uma lei específica para protegê-las contra a violência doméstica. Essa lei foi cunhada como Lei Maria da Penha em homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha Maia, que, em 1983, por duas vezes, sofreu tentativas de assassinato pelo marido, professor universitário, e acabou ficando paraplégica. Lutou por 20 anos pela condenação de seu agressor, ingressando com um processo nas Nações Unidas, o qual despertou o Estado brasileiro para a gravidade da situação. Maria da Penha transformou sua dor em luta e sua tragédia em solidariedade com as mulheres brasileiras. Em 2007, mesmo sem ter tido reflexo direto na diminuição dos casos de violência, a Lei nº 11.340 já se tornara um mecanismo institucional capaz de indicar outra visibilidade para a questão, assim como de garantir mais proteção às mulheres, de acordo com 54% das entrevistadas pelo Data Senado. A Lei nº 11.340 objetivou conferir cumprimento às obrigações contraídas pelo Brasil quando da ratificação da Convenção de Belém do Pará (1994) e re-definiu a natureza desse crime. A Lei prevê a obrigação de o Estado atuar preventivamente contra expressões de violência por meio da inclusão das agredidas em programas sociais, reconhecendo as distintas vulnerabilidades existentes e facilitando o acesso das vítimas à justiça e às necessárias medidas preventivas de urgência, muitas delas no campo do direito de família, para deter a escalada da violência contra as mulheres. Ainda estabelece iniciativas inéditas para enfrentar a violência, como a criação de uma Vara Judicial para atender mulheres agredidas, interferindo na área da segurança pública e no Judiciário, buscando contribuir para mudar práticas institucionais e de atuação dos/as agentes públicos/as no enfrentamento dessa questão. Há consenso de que a Lei Maria da Penha veio para responder às impropriedades da Lei nº 9.099/95, no seu uso em relação à violência contra as mulheres. No contexto da Lei Maria da Penha pode ser destacado o artigo 5º que adota a definição de violência contra a mulher do artigo 1º da Convenção de Belém do Pará e ressalta o âmbito de sua aplicação quando ocorrida: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como relações pessoais afetivas; III - em qualquer outra relação pessoal de afeto na qual o acusado compartilhe, tenha compartilhado ou não o mesmo domicílio ou residência da ofendida. Ressalte-se que são bastante adequadas as definições desse artigo. Contudo, no que se refere ao inciso II, dever-se-ia entender que o âmbito da família compreende também as relações decorrentes de parentesco civil ou natural, e, portanto, não sendo somente compreendida como relações pessoais afetivas. No que a Lei inova? a) amplia o conceito de violência de gênero; b) incorpora a perspectiva psicológica, autodepreciativa que está na base dos atos violentos mais graves e que envolvem a condição moral; c) ataca a violência enraizada em uma cultura sexista secular que mantêm a desigualdade de poder que permeia as relações entre as agredidas e os agressores, cuja origem não está na vida familiar/doméstica, mas que faz parte das estruturas sociais mais amplas; d) traz inovações em relação ao código penal; e) os processos e os julgamentos relativos à violência devem ter preferência nas varas criminais, o que indica uma preocupação não apenas com a celeridade, mas também com o sofrimento, o que propicia melhores condições para a conscientização da condição feminina; f) determina que o Estado crie mecanismos e estratégias para proteger as mulheres, além da implementação de redes de serviços interinstitucionais, promoção de estudos e estatísticas, assim como a implementação de centros de atendimento multidisciplinar; g) determina, para os agressores, o comparecimento obrigatório a programas de recuperação e prevê medidas de proteção à vítima da violência; h) amplia o conceito de sexualidade, contemplando a violência ocorrida nas uniões homoafetivas, pois estas também constituem entidade familiar. Em recente depoimento público dado pela ministra Nilcea Freire, da Secretaria Especial de Política para as Mulheres, destaca-se: Levantamento realizado nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) apurou que no ano de 2005, apenas nas capitais brasileiras, houve cerca de 55 mil registros de ocorrências. O índice salta para 160.824 mil se consideradas as demais cidades. Esses dados, todavia, tornam-se ainda mais significativos por corresponderem a apenas 27% das DEAMs existentes e pelo fato de um número significativamente alto de mulheres não recorrer à autoridade policial por medo, vergonha e falta de crença na eficácia de sua denúncia.15 A violência contra a mulher não é um "evento" considerado excepcional para os segmentos femininos populares. Trata-se de uma prática que redimensiona ou renegocia os pactos domésticos e, nesse sentido, há elementos distintivos entre as mulheres agredidas, os quais passam, sobretudo, pela condição de classe, raça/etnia e não podem ser omitidos. Há vários tipos de críticas em relação à viabilidade e aplicabilidade da Lei Maria da Penha. Nessa contramão são colocados vários "obstáculos". Argumenta-se que o maior rigor da lei pode inibir as denúncias de maus tratos por parte das mulheres, já que agora os maridos sabem que podem ser presos: "Eu só não te dou um tapa na cara por causa da lei nova do Lula e eu posso ser preso", disse o parceiro de uma das mulheres assistidas pela Casa Cidinha Kopcack, que atua na Zona Leste da capital paulista.16 Há outras que questionam quais seriam os limites de intervenção das esferas jurídicas na vida das mulheres! Ainda criticam a Lei, no sentido de que esta não estaria ilesa ao fato de que a justiça jamais considera a condição de igualdade entre homens e mulheres, pois não seria neutra em seus julgamentos, mesmo que formalmente seja regida pelos princípios universais. A Lei assegura que quando uma mulher é agredida, não importa como ou onde, esse ato passa a ser um problema para o Estado e não é mais da esfera privada, cujos encaminhamentos devem ser providenciados. Daí a ênfase da Lei Maria da Penha nas estratégias preventivas. Também a nova legislação não remete mais ao pagamento de pena pecuniária, pelo delito ocorrido; ao contrário, permite que agressor seja preso em flagrante ou que tenha a prisão preventiva decretada. Qualquer avaliação do desempenho da Lei Maria da Penha é ainda prematura. No entanto, algumas análises estatísticas apontam que o volume de queixas nas 128 delegacias da mulher no Estado de São Paulo caiu em 18% no ano que se seguiu à entrada em vigor dessa lei, em setembro de 2007. Isso talvez seja devido tanto ao maior rigor anunciado para os agressores, como ao inegável receio em denunciar, seja em função das represálias, seja pelo desconhecimento das consequências trazidas pela Lei (Ribeiro, 2007). Quanto aos agentes públicos formadores do corpus jurídico, as questões relativas à implantação plena da lei parecem mais complexas. Segundo afirmação de Lessa Bastos (2007), promotor de Justiça do Rio de Janeiro: [...] não por culpa do legislador, ressalva-se, mas, sem dúvida, por culpa do operador do Juizado, leiam-se, Juízes e Promotores de Justiça - que, sem a menor cerimônia, colocaram em prática uma série de enunciados firmados sem o menor compromisso doutrinário e ao arrepio de qualquer norma jurídica vigente, transmitindo a impressão de que tudo se fez e se faz com um pragmatismo encomendado simplesmente e tão-somente para diminuir o volume de trabalho dos Juizados Especiais Criminais. E o pior: não satisfeitos com isto e alheios ao autêntico "cartão vermelho" imposto aos Juizados Especiais Criminais pela Lei Maria da Penha, Juízes do Estado do Rio de Janeiro, reunidos em Búzios este mês de setembro, reafirmaram aqueles enunciados, agregando outros decorrentes da "análise" da Lei Maria da Penha - que, em resumo, poderiam ser sintetizados no seguinte: "considerando que não nos agradou, fica revogada a Lei nº 11.340/06". O maior desafio é institucional e apresenta-se em dois níveis. No primeiro, relativo aos processos de mudança nos paradigmas disciplinares no campo jurídico de formação universitária e profissional, atinge as mentalidades, os valores e as idéias. No segundo, em direção à democratização das relações sociais de gênero no campo da atuação jurídica, atinge a constituição de uma vontade política. Inversamente, em proporções similares, está a dificuldade de a mulher romper com a violência e do homem romper com o papel idealizado de dominador porque "... só quando fica insuportável é que a mulher quebra a barreira do silêncio e denuncia".17 Ademais, em pleno acordo com Campos (2008, p. 2-3) quando afirma: A relutância em aplicar a Lei Maria da Penha talvez possa ser explicada pelo desconhecimento da violência de gênero em nossa sociedade e pelo senso comum teórico dos juristas (Warat). Ao desconhecer que a violência é estruturante das relações hierarquizadas entre os sexos, os operadores do direito desconhecem que ela produz uma vulnerabilidade específica. É exatamente essa situação que torna a natureza da violência doméstica distinta de todos os demais delitos. Esse desconhecimento tem como consequência decisões inadequadas que acabam por sustentar a aceitação social da violência contra as mulheres. Assim, a implementação dessa Lei dependerá dos seguintes fatores: 1) capacitação adequada dos/as agentes jurídicos/as; 2) vontade política; 3) recursos materiais; 4) intenções pedagógicas dos operadores do Direito, pois a Lei implica mudanças substantivas e formais; 5) criação simultânea de serviços jurídicos imprescindíveis para o funcionamento de uma política pública para apoiar e proteger mulheres em situação de violência.