segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Inovações institucionais e legislativas como estratégias de resistência feminista em relação à violência contra a mulher

Faz 30 anos que as mulheres, inconformadas com a disseminação das práticas de controle e violência, criaram os pioneiros espaços de resistências, os SOS Corpo.10 Foram essas as primeiras organizações a denunciar a violência contra a mulher, sem qualquer apoio institucional, com atuações da sociedade civil organizada, crítica e propositiva, reivindicavam a tomada de consciência do Estado. Inúmeras campanhas lideradas pelo movimento feminista na década de 1980 trouxeram ao público a trágica situação de milhares de mulheres mortas em nome da "honra", da "submissão" e do "amor" por seus maridos, companheiros e amantes. Desde aquela época, ficaram cunhados os slogans "Quem ama não mata" e "Denuncie a violência contra a mulher", palavras de ordem das primeiras campanhas contra a violência.
Em 1983, acompanhando as eleições dos primeiros governos democráticos, foi criado o primeiro Conselho da Condição Feminina em São Paulo e, logo em seguida, o do Estado de Minas Gerais e o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), em 1985. Associadas a essas iniciativas, várias ações foram institucionalizadas, com destaque para o movimento das mulheres que reivindicaram a criação, com o apoio do Ministério da Saúde, do Programa de Assistência Integral a Saúde da Mulher (PAISM). No entanto, a iniciativa que teve maior expressão e repercussão como política pública foi a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM),11 e representou um ganho político significativo, pois tornava o Estado também responsável pelo controle dessa violência.
A primeira DEAM foi criada em São Paulo, em 1985, seguida pela do Rio de Janeiro, em 1986. A vivência cotidiana nas DEAMs logo mostrou a necessidade de dinâmicas e estratégias de atendimento específicas, sobretudo por atender segmentos femininos mais populares, e de novos perfis de atuação profissional das/os agentes.
Se, por um lado, as DEAMs não se constituíram em uma realidade isolada, pois, estavam inseridas no processo de redemocratização política e do repúdio à violência de forma explícita, processo esse que influiu na elaboração da Constituição de 1988, por outro, assegurar a existência promissora dessas instituições estaria condicionado a ir muito além da "síndrome da queixa", deslocando a compreensão das/os agentes para as tensas dinâmicas da violência de gênero. Isso efetivamente acabou não ocorrendo, estagnou-se na idéia de que o corpo de agentes das DEAMs não poderia transcender de suas funções formais, e, portanto, não poderia assimilar nem a função das assistentes sociais, nem a das psicólogas. As/os agentes e delegadas/os destinadas/os à DEAM assumiam a nomeação mais como uma forma de intolerância, de desprestígio e até mesmo como um castigo, o que lhes causava mais desinteresse do que compromisso com o desempenho profissional, uma vez que deveriam servir-se das tipificações penais existentes, as quais não compreendiam as formas de violências contra a mulher.12
Nos 30 anos de sua existência, as DEAMs, além de produzirem um efeito político na sociedade, expressaram a legitimidade de que a violência contra a mulher é um problema amplo, de saúde pública, que envolve toda a sociedade brasileira. Assim, a reflexão crítica produzida sobre a "violência contra a mulher", envolvendo a atuação das DEAMs, pode destacar alguns elementos, resumidamente apontados por Suárez e Bandeira (2002):
a) Tomada de consciência sobre a natureza das sociabilidades violentas que permeiam as relações de senso comum na vida cotidiana das mulheres. Além de causarem dor e sofrimentos físicos e emocionais reais, essas violências minúsculas transcendem a realidade vivida, impregnam o imaginário e, ao mesmo tempo, interferem na própria realidade.
b) Importância das organizações de mulheres em processos grupais; o grupo de apoio às mulheres agredidas, como uma experiência inicial de apoio e estímulo, ajudava-as nas escolhas, seja em busca de coragem e autonomia, seja da necessidade de realizar a denúncia, incentivando-as a procurar a DEAM. Em outras palavras, ao estimular as capacidades de autoestima dessas mulheres, a atuação desses grupos dava-lhes, condição de autonomia para enfrentarem o medo e a perseguição, tornando-se mais livres.
c) A percepção de que a violência está presente, senão em todas, pelo menos na maioria das ações e relações sociais, interpessoais e coletivas é extensiva às instâncias públicas. No caso das DEAMs, a expectativa era de que as mulheres "vítimas" não fossem re-vitimizadas, à medida que as/os agentes mudassem o padrão de acolhimento e a cultura da escuta, o que poderia gerar, necessariamente, um aprendizado das/dos próprias/os agentes em relação ao seu desempenho.
d) A crítica elaborada abalou a crença de que a cidadania tem funções de integração social e que garante, ipso facto, a equidade social, regulando as violências interpessoais. Contra-argumenta-se que a cidadania, tal qual definida formalmente, não poderia absorver e regular os conflitos interpessoais, visto que estes estão mais enraizados nos costumes do que nas desigualdades sociais.
e) O assassinato de mulheres é considerado fato de extrema gravidade, enquanto que as minúsculas agressões cotidianas - quase sempre admissíveis - estabelecem novas regras de sobrevivência associadas aos conteúdos morais antigos e recentes que caracterizam o padrão de sociabilidade entre homens e mulheres e intragêneros (Machado da Silva, 1999).